quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

A Revolucionária e a Presidente


O sol anunciava que iria se recolher, mas isto de nada intimidava os presentes. As paredes do planalto eram testemunhas do burburinho instalado. Era a festa da nova era. Políticos, pilantras e outras celebridades eram lambidos pelos flashes das varias câmeras presentes. "Uma palavrinha... uma palavrinha..." gritavam alguns, outros, mais perdidos, observavam como se ali não estivessem.

Um banquete, sem duvida um brinde ao desperdício. Rei morto rei posto, pensava a Revolucionária, quem dera, mais parece muito mais do mesmo de sempre. A redundância da soberba a enfadava. Seguia perdida pelos salões abarrotados, não estava claro o porquê ela aceitara acompanhar a Amiga, o porquê aceitara viver para sempre como testemunha daquele horror.

Não se trata de rivais, mas passou que minutos depois a Revolucionaria e a Amiga pararam diante do bigode branco mais cínico do salão. O coronel esforçava-se para ser simpático, mas sua natureza mostrava dificuldades em assim proceder. A violência implícita em sua forma de ser escapava por alguns segundos, depois, astuto como uma raposa, a disfarçava entre risos cínicos e bocejos.

- Veja só quem por aqui permanece - Disse a Amiga - Há uns que só sairão mortos daqui.

- Compadeço mais com aqueles muitos, regidos por ele, que nem a mínima idéia tem que este lugar existe. Quisera eu e meu estomago essa inocência de volta.

As jovens acompanhavam a entrevista a um braço de distancia do Coronel. O comentário das mesmas foi ouvido pelo repórter do programa humorístico. O mesmo teve a idéia de propor, ao vivo, que Revolucionaria fizesse uma pergunta ao Coronel. A menina se viu diante daquele bigode branco, a lhe sorrir com a paciência dos populistas. O que se viu a seguir foi um show de civilidade, onde moça e raposa duelaram na palavra temas duros e polêmicos, tal como habilidosos jogadores de uma partida invisível a olhos desavisados.

Assim como acontece em partidas de jogos em geral, aquele que perde a sanidade parte sempre para a violência. Em questão de segundos o país assistia em rede nacional um vexame. O Coronel, irritado com tudo mandou prender a todos, menina, repórteres e parte do público. Homens de braços grandes e ternos pretos passaram a arrastar quem o Coronel havia indicado. O mesmo esquecera-se de mero detalhe, tudo o que passava era retransmitido em rede nacional e em tempo real.

A Revolucionaria ardeu em raiva quando a agarraram pelo braço. Estava com tanta raiva que seria capaz de, com uma pinça, retirar um por um dos fios cínicos daquele bigode. Gritou como se seus pulmões ganhassem voz e seu fígado pudesse limpar parte da sujeira daquele salão.

- Serei então presa, em plena festa da democracia, pelo bigode branco mais cínico deste salão imundo. Bravo. Que o Coronel vá cumprimentar com sua mão suja a Presidente. Que esses dedos, que ajudaram a torturá-la tempos atrás, agora se ofereçam para servi-la. Déspota, tirano, não sabes falar outra língua que não seja a de seus interesses e suas violências. Mas fala em uma língua provinciana Coronel, seus dias estão contados. Figuras grosseiras como você são responsáveis por desesperados como eu, que rogam para que parem.

Nisso toca o telefone em um salão de veludo. "é Ele, é Ele..." zumbiam os rumores. A Presidente é localizada em uma roda de apertos de mãos. Atende, sua expressão é um misto de quem recebe uma ordem com a tranqüilidade de quem ouve um guru. Minutos depois ela pede um assessor, três vem ao seu auxilio carregando tudo que ela precisa um laptop e fones de ouvido. A mesma se intera do que passa no saguão e recebe coordenadas das raposas mais competentes do planalto. Devidamente informada distribui funções e tarefas, programa que em quinze minutos, na sala presidencial, receberá a Revolucionaria, mas o fará como mulher, depois irá se pronunciar como presidente.

A manchete rola pelo país. Todos querem saber mais sobre a audaciosa guria que desacatou uma autoridade, discursou para as câmeras, foi presa e agora será recebida pela presidente. Pela internet a noticia se espalhou. O assunto dominava os TTs do Twitter, e o perfil da moça nas redes sociais foi um zilhão de vezes visitado. Seus amigos davam entrevistas, seus parentes eram localizados. Parte da família estava horrorizada, outra parte gritava em brados, felizes pelos valores e pela mensagem deixada. Sentiam que a moça vivia sua própria história e que cada um recebera de deus um tempo para atuar, e seus braços para escolher como se comportar.

A Mãe era próxima, conhecia-a com o saber que apenas as que carregaram no ventre podem ter. Chamou a Amiga pelo telefone que confirmou os rumores. A Revolucionária estava presa, mas anunciavam o futuro encontro com a Presidente. Ela havia encontrado na multidão uma amiga em comum, que estudara com elas. A Mãe reconheceu a Amiga, e ficou sabendo que a mesma já estava próxima ao local em que a Revolucionaria estava presa, junto com outros repórteres. A mesma se utilizaria do fato de ser da imprensa para chegar até a Revolucionaria e entregar-lhe seu celular. A Mãe se tranqüilizou, a Amiga garantiu que alta noite a Mãe já falaria com a filha. Despediram-se.

Na cela se ouvia muita gritaria e tumulto. Parece que haviam danificado a câmera e que o barulho ofuscara a noite de gala. A Revolucionaria assistia os homens gritarem em um canto quando reconheceu um par de óculos e seu penteado clássico. Aproximou-se das grades rindo e disse:

- Me da um cigarro.

A repórter, rindo respondeu - onde aprendeste a enfrentar autoridades em jantares públicos?

- Sabes bem de onde venho, porque juntas fomos criadas, e nossos seres respiram na mesma estrada, como cúmplices ou irmãos - Disse a Revolucionaria quase com riso - É bom ver uma figura conhecida. Sabes o que me irá suceder?

- Venho justamente pelo jornal, te trouxe um celular, teu celular, e te aviso que parece que a Presidente irá te receber.

- A todos?

- Não. Somente a ti.

- Parece que este circo não se cansa de girar.

- Te peço que me informe. Guarde meu numero e me comunique seja o que for, peço-te uma exclusiva, que assim me ajudas, e ao mesmo tempo da-me o prazer de participar de mais este feito da noite.

- Pois vejo que te tornaste eficiente repórter, e como irmão de berço te farei o que precisares. Peço-te então que administre o que irá passar, pois imagino que já se deve circular ai a noticia. Sabes o que foi que fizeram do miserável de bigodes?

- Retirou-se em seguida. Parece que já havia estado no salão com todos e estava de saída naquele momento.

Diferente da forma bruta que a Revolucionaria havia entrado naquela sala de grades, agora era gentilmente convidada a sair. Iriam direto a sala da Presidente. Como eram ridículos os protocolos e odes depois que se foi aviltado momentos antes. A moça se ria e chorava por dentro. Vertia em lagrimas internas a sua constante perda de inocência. Sabia que queria saber mais, tinha sede de saber. Mas aquele saber, tão cheio de domínio, sobre o que se havia de mais atual na malicia, este saber era nocivo para uma alma de paz.

A sala era suntuosa, rica em detalhes e adornos. Ao fundo havia uma janela larga, quase tão larga como a grande mesa e as cadeiras logo à frente. Do outro lado da mesa havia uma mulher de faces rubras e olhos ligados. A porta se fechou lentamente após um sinal feito com a mão da Presidente. Deixaram-nas a sós. Existia, naquela artificial ocasião, uma vontade secreta de ser honesto. Duas mulheres em uma sala, duas estrelas a sós em meio a um espetáculo voraz a espreitá-las por fechaduras.

Frente a frente, trocaram mais olhares que palavras em um primeiro momento. A Presidente, como boa anfitriã iniciou a conversa:

- Faz-me lembrar do tempo em que almoçava coragem para jantar sonhos.

- Em teus sonhos não imaginava apertar a mão e governar ao lado dos que contribuíram para teu horror e penar? - Falou a moça

- Que pergunta mais sentimental. Acaso acreditas em céu e inferno também?

- Quais deles se refere à Presidente? O céu dos cantadores e o inferno dos demônios? O céu de enfados e o inferno das perdições? Ou talvez faça referencia ao céu da paz de espírito e o inferno que são os tormentos da alma.

O telefone da Revolucionaria tocou. A Presidente consentiu que a mesma atendesse. Tratava-se de sua Amiga e a Repórter. A menina fez com sinais que trocaria algumas palavras, a Presidente alcançou um telefone e fez o mesmo. Combinaram em códigos quase cifrados que a Revolucionaria manteria o telefone ligado em seu colo, assim teriam elas como gravar e acompanhar o que se passava naquele escritório.

A moça fingiu desligar o telefone, a Presidente colocou a chamada no viva voz, era Ele. Sua voz peculiar e seus gracejos não deixavam dúvidas, era mesmo Ele. Falou por quase dez minutos. Às vezes fazia que parava, mas retomava com fôlego e ressuscitava seu discurso. Falava bem, de fato, tanto sucesso não era por menos.

Em menos de dez minutos caíram às paredes daquele escritório, tudo que se passava por lá era publicamente dividido por vídeos, sons e texto. Haviam trechos do dialogo traduzidos para doze idiomas em sites de grandes jornais mundo a fora quando ficou claro que a informação vazara por duas vias.

A Presidente terminava seus assuntos com Ele quando foi interrompida pelas noticias frescas. Seguiram o plano inicial, quase um protocolo. A Presidente mudou de face, metamorfose nata que passa a todo lobo que vive em pele de cordeiro. Tão logo me fitou pela ultima vez nos olhos e disse - Iras aprender com o tempo que quando se fala em poder morre a idéia de privacidade, moral e inocência.

Foram direto para o saguão da esplanada. A corrente de assessores e seguranças deixavam claro que a moça deveria caminhar com eles, lado a lado da Presidente. Foram juntos até o palanque onde a menina foi colocada sentada em uma cadeira central. A Presidente estava a sua direita, discursava. Durante aquela fala tudo ficou claro, todo o jogo e o presente. Aquela mulher sabia que de outra forma a Revolucionaria não ficaria para assistir aquele teatro até o final, sabia que se tratava de uma estrangeira. Fez de forma que não houvesse escapatória para a quase refém convidada.

Por fim chegou à vez de exibir a caça e fazer com que o segundo sol da noite brilhasse. Tal qual um bife passa do açougue, cozinha, panela, para enfim estar no prato, à moça veio como prato saído do forno, para frente das câmeras. Ao lado da Presidente ouviu o mesmo que a multidão que gritava:

- A festa da democracia não será manchada com prisões que beiram o abuso de poder. Esta casa é o templo do dialogo, e é este e não outro que aqui governará. - Em seguida parava para poses e gritos, então prosseguia - São livres todos os homens e mulheres, e assim seguirão dentro do respeito e da cordialidade, que é o que queremos para todo o país.

Um repórter intrometido gritou perguntando-lhe o que pensava da atitude do deputado Coronel. A mesma reiterou a idéia de liberdade. Aquela situação golpeava a moça de corpo e alma. Os amigos acompanhavam suas suplicas silenciosas de perto, os outros poderiam ver o mesmo de qualquer ciber café. Pedia que parasse. Foi quando outro repórter astuto perguntou sobre o que disse a menina que fora apelidada de Revolucionaria pela imprensa. Foi então que novamente o estomago da moça ardeu e a Presidente disse:

-Há correntes que pensam de forma retrograda, interagem com o ambiente da maneira que podem, são violentas por natureza. Eu tão bem conheço suas entranhas, e disso todos sabem. A jovem que fui hoje está aqui ao meu lado. E como lhe disse como amiga e mulher repito agora como Presidente: Sob a minha guarda não haverá cárcere para aqueles que berram por justiça.

Foi o delírio do povo. Até fogos de artifícios eram lançados. Tratava-se do epicentro do pão e circo. Nunca mais a Presidente se dirigiu a moça. O protocolo terminara e a festa, enfim, seguiria como coquetel.

As três meninas caminharam silenciosamente pelo gramado. O entorno era de luz, mas naquela noite se assemelhava a ruínas. Sentaram de frente para o prédio, admirando o famoso cartão postal de Brasília. Um gosto árido no ar refrescava as cabeças que corriam em pensamentos acelerados.

A Repórter tirou da bolsa um computador e um baseado. Sentaram e fumaram juntas. Contaram anedotas, riram lembrando-se de dias em comum, falaram um pouco da noite, da vida, e dos planos. Estavam abrindo a segunda garrafa de vinho quando começaram a pesar os efeitos daquela noite no mundo. O que antes pareciam três moças a beber, agora eram três fortalezas. Cada uma seguia sua analise por um viés e a cada dado novo conseguiam desenhar no ar a gravidade do que estavam vendo.

A popularidade da Presidente havia crescido vinte por cento em apenas duas horas, e tal pesquisa havia sido feita com jovens. A Revolucionaria então pediu para gravar um depoimento, e assim o fizeram:

- Nada, absolutamente nada. Nem mesmo um arranhão em todo este jogo. O escândalo serviu apenas para entreter, ajudou a colorir a cortina de fumaça que está muito mais em baixo. A popularidade é uma espécie de lucro, de paz, e de informação. Avisa a eles que sim, estão cegos, e não podem enxergar o que fomos agora obrigadas a ver. Mesmo eles não passando de escravos de suas ambições egoísta, mais pobres somos nós que os deixamos ai. São o mais amargo dos reflexos de nosso rosto, de nós. Qualquer um dos presentes esta noite não são nem amigos nem inimigos, são irmãos. Aquele que aqui esteve e algo entendeu, plantou aqui sua inocência ou a perdeu.

A Amiga percebeu o tamanho da aflição. Por muitas vezes queremos curar as feridas dos que nos rodeiam, mas no geral não podemos muito fazer. Naquela noite, tudo que poderia fazer era estar junto. Aqueles que vivem juntos na jornada da vida inventam e aprendem línguas próprias. Naquele momento falariam a língua do "tudo bem". Eram raros os momentos que se falava esta língua, em geral todos quando se estava à beira da exaustão. Concordaram que era bom momento para ir dormir, dormir e deixar o mundo adormecer.

autoria Anne Feingold

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